Os melhores alunos do país estão a ficar piores
E o que lhes estão a fazer os melhores professores do país
(Carlos F. Bispo, DEEC)
Começo com uma citação de Rui Zink, que poderia ser o equivalente ao juramento de Hipócrates para professores.
“A ver se explico. Um professor não esconder de onde vem nem o que pensa não é crime. Crime é favorecer ou prejudicar alunos em função das ideias políticas destes, ou das simpatias. Dar aulas não é fácil. Há que encontrar o equilíbrio entre o improviso e a preparação, gerir o tempo (spoiler: gere-se sempre mal), cativar os desinteressados, ser redundante, mas pouco, para não perder os interessados, aliviar a matéria com apartes picantes que ajudam os alunos a acordar, mas correndo o risco de os indignar. Quando bem intencionada, uma aula é um prodígio de generosidade. Quando bem dada, um milagre. Como se diz em inglês, c’est pas facile, pazinhos”.
Não, não é mesmo nada fácil. No caso do IST, arranjámos forma de o complicar ainda mais há três anos quando abolimos os semestres e passámos a leccionar cursos em sete semanas. Uma das falácias de quem gere a escola é que temos os melhores alunos do país, nas áreas das engenharias presume-se. Uma dedução quase que incontornável é que, quando a grande maioria dos professores do IST foi formada nesta escola, teremos também os melhores professores do país, presumivelmente também, mas restringindo às áreas das engenharias.
E o pasmo é este. Os melhores professores do país com os melhores alunos do país estão a fazer grossa asneira todos os dias há já três anos e há quem continue a tocar a mesma música enquanto este Titanic do ensino, presumivelmente inafundável, parece caminhar para a irrelevância no panorama nacional. Os ratings internacionais ainda não tiveram tempo de abrir a pestana para o que está a acontecer e, se não houver inversão da actual política, acabarão por dar com a coisa. Quem já começou a dar com a coisa foram os alunos e suas famílias, na medida em que, no panorama nacional, o IST tem vindo a perder o seu lugar para outras escolas, como a comparação com a FEUP já vai evidenciando.
No caso mais específico da licenciatura e mestrado em Engenharia Electrotécnica e de Computadores os melhores alunos do país que nos têm cabido em sorte estão alguns dB abaixo dos melhores alunos do país que têm entrado no IST para Engenharia Informática e de Computadores, Engenharia Aeroespacial e Engenharia Biomédica, só para citar alguns exemplos.
Mas se a isto juntarmos o mais recente alerta produzido pela Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM), caracterizando o enorme trambolhão que os alunos portugueses deram nos últimos 8 anos nos testes TIMS 2019 e TIMS 2023, só podemos acrescentar, se quisermos ser verdadeiramente sérios, que os melhores alunos do país estão hoje muito piores do que estavam há oito anos. Nem vale a pena tentar dourar a pílula com a desculpa já estafada do Covid-19, porque Portugal não foi o único país do mundo a sofrer as suas consequências e compara mal, mesmo muito mal, com os seus congéneres europeus. Aliás, até há quem tenha dito que o Covid-19 não foi tão mau em Portugal como noutras partes nossas vizinhas próximas. O que só contribui para maior incredulidade quando se observa, por exemplo, que os alunos portugueses do 8º ano caíram 25 pontos, sem paralelo nos restantes países europeus.
De acordo com a SPM, os excelentes resultados alcançados no PISA 2015 e TIMS 2015, resultantes do esforço continuado dos sucessivos governos, foram absolutamente hipotecados, primeiro, “por um programa de estudos que desvalorizou as metas, os programas e políticas de avaliação que conduziram aos resultados de 2015,” a que se seguiram as “Aprendizagens Essenciais vagas e as políticas que desvalorizaram a avaliação e substituíram a exigência e a ambição educativa por uma orientação laxista e pouco estruturada do ensino.”
Nada disto tem que ver com o IST, esse bastião da qualidade de ensino com os melhores professores e alunos do país, em engenharia, onde se almejam taxas de aprovação da ordem dos 80% dos alunos inscritos sem comprometer a qualidade do trabalho realizado nem sem recorrer a facilitismos nem laxismos. Assim que um aluno entra no IST, qualquer que seja a sua nota de candidatura e qualquer que seja o curso em que ingressa, recebe logo o crachá de melhor aluno do país, mesmo que tenha nota de candidatura na faixa dos 12.0 valores. São os melhores 12.0 valores do país.
É preciso, de uma vez por todas, deixar de tocar a fanfarra celebrativa e reconhecer que, pelo menos, no caso concreto da Licenciatura em Engenharia Electrotécnica e de Computadores (LEEC), não temos os melhores alunos do país e que, mesmo que os tivéssemos, esses estão hoje em piores condições do que estavam há quatro anos e os próximos quatro anos não são animadores. Por isso, sendo piores do que já foram, não serão suficientemente bons para aquilo que se lhes pede para fazerem, no quadro do actual plano curricular com leccionação em períodos de sete semanas. Pede-se-lhes que, em sete semanas, sejam capazes de desenvolver trabalho de forma autónoma; que estudem a documentação de suporte das aulas teóricas (textos, vídeos, exercícios, etc.), antes dessas aulas acontecerem; que sejam capazes de liderar e/ou condicionar o rumo dos acontecimentos numa aula (formato “flipped class”); que sejam capazes de cumprir prazos sem perder a sua capacidade de participar de forma activa e empenhada nas aulas, qualquer que seja o formato delas: teóricas, teórico-práticas, práticas, laboratório ou outras; e que estejam sempre prontos a ser avaliados, sem que tal prejudique tudo que anteriormente se disse esperar deles.
Se o leitor leu o parágrafo acima sem esboçar um sorriso, ou mesmo uma gargalhada, face ao lirismo deste modelo de ensino, que nem sequer encontra paralelo com o treino que os alunos possuem na sua experiência escolar no ensino secundário, então este texto não é para si. Há sempre espaço para mais “fanfarristas” na banda dos acólitos que afirmam que o rei vai magnificamente bem-trajado. Este lado da contenda é para os supostos “Velhos do Restelo”, que insistem em querer ensinar, por oposição a fingir que o fazem, e desejam que os seus alunos aprendam, em vez de fingir que o fazem, e que permanecem incapazes de se “adaptarem” ao novo modelo de ensino, como são acusados pelos serviçais da ideologia em vigor. Há toda uma agenda intuível de significados para o verbo adaptar neste contexto. E tem havido quem, para não ser incomodado, se tenha mesmo “adaptado” ao ponto de haver exames de recurso com médias superiores em 4 ou 5 valores face às das primeiras chamadas, quando a “adaptação” não foi adequada nas primeiras. Há os que dizem que o problema é o volume do que se quer que os alunos aprendam. Pois! É seguir o exemplo do que se tem passado no ensino não universitário em Portugal nos últimos oito anos. Afinal, se os restantes países europeus conseguem que os seus jovens aprendam mais, será preciso sempre ter geografias de lazer para esses jovens. Para funções profissionais na área do Turismo, da hotelaria de cinco estrelas à venda de Bolas de Berlim em praias, convenhamos que realmente não é preciso ensinar nem aprender muito e as engenharias são áreas do saber dispensáveis e supérfluas.
O actual modelo de ensino no IST tentou responder a problemas reais que existiam anteriormente. Mas fê-lo mal na direcção e na forma, de acordo com a visão deste “Velho do Restelo”.
Antes da “desforma”, termo que me parece mais adequado que reforma, as taxas de aprovação nas UC’s não eram famosas, a taxa de absentismo às aulas era alta e os períodos lectivos eram demasiado perturbados com as avaliações intercalares, que se se estendiam por cerca de 3 semanas, no centro de cada semestre. O que mudou relativamente a este estado de coisas? As taxas de aprovação continuam a não merecer honras de passadeira vermelha, a taxa de absentismo aumentou generalizadamente e os períodos lectivos estão a abarrotar de avaliações infinitesimais que retiram os alunos das aulas a que não regressam depois dos tsunamis de vazio que invadem as salas de aula.
Como é que os docentes são supostos promover as famosas “flipped classes” em salas quase vazias, com uma vintena de alunos que não olhou para uma única linha de texto, nem viu um segundo de nenhum dos vídeos disponíveis, nem consolidou a matéria das aulas passadas?
Um modelo de ensino que está, à vista de todos, a falhar em todas as suas promessas, tem de ser abolido sem direito a honras fúnebres. Um modelo de ensino em que se gasta parte significativa dos períodos lectivos a avaliar em micro avaliações, quando se devia estar a ensinar não é um modelo de ensino. É um modelo de avaliação em que o ensino foi pela borda fora e onde claramente não existe incentivo à participação activa nas aulas. Não se ensina, nem se aprende.
Num dos mais brilhantes filmes protagonizados por Peter Sellers, um jardineiro simplório chamado Chance, que não sabe ler nem escrever, cresce fechado na casa do patrão, e quando ele morre é posto na rua. Sem saber nada do mundo além do que via pela TV, ele acaba ficando amigo de um homem influente, que confunde a sua inocência com sabedoria, ao ponto de chegar a ser considerado um sério candidato à presidência do EUA. Uma das suas tiradas inocentes transforma-se, aos olhos dos analistas e comentadores, num verdadeiro plano estratégico transformador do país. O que diz ele? Apenas qualquer coisa como isto, “There’s a time to sow and a time to harvest”, que é coisa que qualquer jardineiro sabe.
Eu diria que há um tempo para ensinar e um tempo para avaliar, que é coisa que qualquer professor que se dê ao respeito sabe. O que se está a fazer agora é andar a colher sem que às vezes se tenha sequer lançado semente à terra.
Contemplemos um formato semestral constituído por dois períodos de 7 semanas de aulas, intercalados com uma semana sem aulas para avaliações intercalares. Enquanto há aulas, algumas disciplinas poderão necessitar realizar avaliação em torno de trabalhos de laboratório com pesos mais ou menos significativos na nota final como função da sua natureza específica. Não no molde de modelo único que agora se vai praticando. Há disciplinas que necessitam que os seus alunos realizem um projecto integrador ao longo das 14 semanas. Haverá disciplinas que necessitam que os seus alunos realizem um teste intercalar na oitava semana do semestre, fora das aulas. Chegados à nona semana os trabalhos são retomados sem que tenha sido necessário que os alunos se ausentem durante aulas para preparação de um ou dois testes intercalares. Outras disciplinas poderão querer dispensar a realização de avaliação intercalar, assentando o formato de avaliação na figura de exames finais a realizar depois de se concluir todo o período lectivo.
A taxa de aprovação nas várias disciplinas pode ser endereçada de outra forma alternativa à pressão, inaceitável à luz do Estatuto da Carreira Docente Universitária, sobre os docentes, que corre o risco de adquirir contornos persecutórios e enviar sinais de empoderamento e desresponsabilizadores aos alunos. Os alunos também têm responsabilidade nesta matéria, sobretudo aqueles que se inscrevem em disciplinas para as quais acabam por não se submeter a qualquer avaliação, seja de que natureza for.
Num cenário de dois semestres totalizando 28 semanas líquidas de aulas, 2 semanas de avaliação intercalar e possivelmente 2/3 semanas de avaliação final para cada semestre. Admitamos um “upper bound” de 3 semanas para avaliação final em cada semestre. Removendo as 36 = 2*(14+1+3) semanas associadas com os dois semestres, mais 2 semanas de férias de Natal e Ano Novo, mais 1 semana de férias de Páscoa, sobram 13 semanas. À imagem do que se faz noutras escolas, os alunos reprovados numa disciplina poderiam ter a oportunidade de repeti-la no mesmo ano lectivo, agora em formato intensivo em 8 ou 9 semanas no Verão, lecionada por estudantes de doutoramento com alguma forma de supervisão e acompanhamento por parte do docente responsável pela disciplina ou mesmo por docentes de carreira com este tempo de docência enquadrável na DSD regular. Naturalmente que teriam de existir limites ao número, possivelmente 2, de disciplinas a frequentar neste formato.
Numa solução desta natureza, está colocada a ênfase no sítio adequado: aumentar as oportunidades de aprender. O actual modelo aposta mais em aumentar a oportunidade de se ser avaliado, levando alguns alunos a olharem para a avaliação como uma espécie de lotaria em vez de a encararem com a seriedade com que deve ser encarada.
Termino com um banho de humildade pela pena de Alberto Caeiro porque, com as minhas palavras, estarei a tentar “inventar (um)a máquina de fazer felicidade”.
Falas de civilização…
Falas de civilização, e de não dever ser.
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as coisas humanas postas desta maneira,
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seriam melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as coisas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!